UM SOPRO
A
escrita pesa. A memória corta. O cotidiano tem sido perigoso e nós ainda
estamos vivos para escrever a história de nossas vidas e dos outros que ficam e
que se vão num sopro, num instante de passagem, num abrir e fechar dos olhos
somos roubados e nos levam a convivência de que amamos para nunca mais voltar a
sorrir do nosso lado.
A
correria e a movimentação de carros pelas ruas do bairro anunciavam a
inquietação das pessoas perante mais um conflito sangrento no bairro. De onde
moro deu para escutar as rajadas de bala que ocorreu naquela noite e que veio
vitimar prematuramente mais um jovem.
Não
era mais um jovem, assim como nunca é mais. Menos um jovem para viver, sonhar,
lutar, brincas, amar, sorrir e viver. Mais um jovem para sustentar as
afirmativas técnicas das estatísticas de quem enxerga a periferia e seus corpos
apenas como números e laboratórios.
Evitei
olhar as notícias e as redes sociais temendo conhecer o jovem que acabara de
perder a vida, pois não é fácil continuar uma noite de sono depois de um corte
que sangra em tuas memórias e afetações. Não demorou muito para que esse
presságio se tornasse uma realidade bem diante dos meus olhos ao ver a foto
desse jovem circulando pelas redes sociais de amigos que lamentavam e choravam
pela perca de mais um amigo.
Um
filme se inicia em tua cabeça e você faz uma regressão em suas memórias
afetivas que agora lembram e fortificam os momentos que foram possíveis com
essa pessoa que agora já não está entre nós de corpo presente, mas viverá nas
lembranças e nas fotografias captadas pelas nossas memórias. É assim que quase
sempre me vejo perante os cortes na alma, ou escrevo ou me calo. Hoje preferi
escrever e fotografar minha memória para que não se perca diante meus
esquecimentos.
Ninguém
está preparado para perder alguém que ama, admira e que ainda nem mesmo começou
a viver. A temporalidade de nossa existência nos coloca na angustia de
percebermos a vida dentro dos sentidos lógicos que não sustentam a dor e o
sofrimento de seguir a vida depois do luto.
Dos
meus lugares para escrever essas linhas hoje escolhi o de um professor que
acaba de perder um ex-aluno para a absurda lei da violência que nos segue a julgar,
sem nenhum sentido, sem nenhuma apelação, sem sabermos a quem recorrer. Perdi a
presença do jovem que há seis anos atrás era aquela criança que chegava para
mim perguntando se tinha vaga nas aulas de bateria.
Fui
professor desse jovem nas aulas de iniciação a musicalização num projeto que
era executado pelo Movimento Social FOME que tinha como objetivos apresentar
para as crianças, jovens e adultos do bairro um primeiro contato com os
instrumentos musicais e os processos de musicalização.
Eu
era o professor de iniciação a bateria e tinha uma turma entre dez alunos,
incluindo crianças, jovens e adultos. Uma dessas crianças era Victor. Sempre
empolgado e alegre com os amigos da aula de bateria, logo Victor dominou as
primeiras noções básicas de ser um baterista. As aulas se davam na imanência de
percebermos as diferenças que cada um trazia e assim fazer das diferenças novos
caminhos para a aprendizagem coletiva.
Ser
esse educador não formal que usa o lado de fora da escola para concretizar os
sonhos tem esse preço de ser afetado e construir essas narrativas a partir da
experiência múltipla do cotidiano. Diante essa perda não é fácil contextualizar
as experiências como educador, mas sim, é forte demais para reafirmar que a
educação que construímos fora da escola tem nos proporcionado a percepção
carinhosa de sentir cada criança, jovem e adulto em sua total vontade de
potência.
Tive
o meu momento oportuno para fazer a diferença na vida de alguém e o fiz com
muito amor e dedicação. Continuarei nessa luta, insistirei na importância de
nossas narrativas educacionais dentro e fora da periferia e sempre lembrarei
com muito carinho do Vitim que se garantia na bateria e que até hoje tenho os
vídeos dos momentos vividos nas aulas de bateria.
Que
a terra lhe seja leve Victor
Que
o tempo cure a ferida que hoje se abriu
Que
sua mãezinha e seu paizinho logo encontre conforto no coração
Que
seu sorriso nos blinde do mal
Ainda
há amor na periferia
Enquanto
estivermos de pé lutaremos por dias melhores
Sem
maldade no coração você nos deixa
Assim
seja a vida
Um
sopro
Que possamos construir uma sociedade em que jovens não sejam levados assim tão cedo. Toda a solidariedade a essa família que agora chora esse luto. ��✊